segunda-feira, 15 de setembro de 2008

CARTA DESPRETENSIOSA

Meu caro. Recebi seus apontamentos.
Sei que me não aceitará a resposta com o desejável entendimento. Se ainda me guarda na lembrança, não me tolera a sobrevivência.

Ler-me-á as palavras, longe daquele acolhimento afetivo da época em que me afundava num escafandro igual ao seu, sob o denso mar do oxigênio terrestre.

Receber-me-á o esforço de agora com extremo espírito crítico. Buscará saber, antes de mais nada, se empreguei os verbos acertadamente e se pontuei a missiva com a
elegância necessária.

Provavelmente dirá que meus recursos empobreceram, que minha argumentação não
convence.

Vamos, contudo, às suas ponderações.

Afirma você que os espíritas desencarnados, pelo noticiário que fornecem ao mundo, se movimentam num plano absolutamente irreal.

A seu ver, moramos em casas ilusórias, cuidamos de instituições que não existem, colhemos flores e frutos de mentira e pairamos, como sombras, num campo de fantasia.

E acrescenta que, para ajuizar de nossa situação, toma por base o mundo em que pisa.

Na apreciação que lhe orienta os conceitos, a esfera em que você ainda respira é a mais sólida de toda a estruturação universal.

Coisa alguma sofre modificação ao redor de seus passos, segundo a posição especialíssima em que se coloca.

Se me demorasse por aí, talvez experimentasse amnésia idêntica. Basta dizer-lhe que enquanto carreguei o fardo benéfico da carne era eu perfeito desmemoriado em relação aos meus próprios defeitos.
E, quanto às minhas necessidades essenciais, nunca atentei para o tempo que corria, célere, em torno de mim.

Quando os amigos me atiraram terra e cal ao corpo inerme, foi que meditei na transitoriedade das situações e das coisas.

Reportei-me então à infância distanciada e revi nossa aldeia do Norte, perseguida pela areia invasora.
Casario e arvoredo converteram-se, pouco a pouco, num montão de ruínas.

Companheiros de jogas infantis desapareceram. Alguns haviam partido à procura de cidades fascinantes, outros jaziam
submersos na neblina da sepultura.

Reajustou-se-me a memória, gradativamente, e tornei, pelos olhos da imaginação, à casa que me viu nascer.

A morte brandira, ali, sua foice enorme, a torto e a direito. A doença lavrara por lá, copiando o fogo em pastagem alcantilada.

Transformações não tinham conta. O padeiro falecera de uma noite para o dia, vencido por um insulto cerebral.

A lavadeira que residia em frente de nós, mulher robusta e desassombrada, repentinamente passou a usar muletas, em razão da perna quebrada.

Nossos vizinhos, de tempos a tempos, trajavam rigoroso luto, homenageando parentes mortos; e até o padre mais velho, que despendia semanas, transmitindo-nos o
catecismo, certa manhã se deixou transportar para o cemitério, quando menos esperávamos.

Tudo se modificava, de hora a hora, até que nos separamos a fim de rever-nos, mais tarde, na Capital da República.

Você fazia o possível por ocultar os males do estômago e eu dissimulava habilmente as perturbações do sistema endócrino.

Seu rosto não era o mesmo. Rugas surpreendentes marcavam-no todo. Seus cabelos, que conhece finos, sedosos e abundantes, estavam ralos e encanecidos.

Seus olhos fitavam-me com firmeza, todavia, injetados de sangue. As mãos bem cuidadas não mostravam a despreocupação do princípio; entretanto, revelavam-se pesadas e grossas, exibindo veias salientes.

Certo, você notou profunda mudança em mim, mas a gentileza lhe asfixiou as observações pessimistas que procurei calar igualmente por minha vez.

E as moças que cortejáramos noutra época, enlevados na paisagem do berço? Algumas
delas, no Rio, embalde tentavam recursos contra a jornada implacável da Natureza.

Eram quase irreconhecíveis. Odontólogos exímios não lhes restauravam a boca que namoramos, embevecidos, nos primeiros arroubos da juventude.

Surgiam na avenida, assim como nós ambos, procurando farmácias para, o reumatismo iniciante.

A morte, meu caro, teve o condão de acordar-me as reminiscências.

E considerando a amizade que sempre nos ligou, no cenário humano, rememoro, saudoso, sua própria felicidade longínqua...

Não ignoro que você perdeu os pais, a esposa inesquecível e o filho mais novo que lhe era particularmente querido pelas afinidades sentimentais.

Em dez anos, você mudou de residência quinze vezes, procurando alívio para o coração angustiado, irremediavelmente enfermo...

Seus olhos permanecem fixos no pretérito e, identificado com a sua dor de peregrino, cheio de ouro e vazio de paz, lembro-me, saudosamente, até mesmo de seu belo papagaio que nos divertia, faz quase trinta anos, gritando os nomes de políticos influentes da hora...

Desejaria confortá-lo, revivê-lo, mas... você, apesar de batido pelam desilusões e renovações incessantes, está convencido de que vive no plano mais sólido e inamovível do Universo e acredita que eu seja um vagabundo invisível a contar anedotas destinadas à ingenuidade humana.

Você, homem de carne e osso, declara-se imutável e assevera que não passo de sombra
a voltar do país da morte.

Como poderá um fantasma consolar um homem seguro de ai, a ponto de julgar-se intangível?

Decididamente, você tem toda a razão.

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