sexta-feira, 29 de agosto de 2008

NEM FAZ TANTO TEMPO ASSIM,

As pessoas diziam vosmecê.
"Vosmecê concede a honra desta dança?"
Com o tempo, fomos deixando a formalidade de lado
e adotamos uma forma sincopada, o popular você.
"Você quer ouvir uns discos lá em casa?"
Parecia que as coisas ficariam por isso mesmo,
mas o mundo, definitivamente, não se acomoda.
Nesta onda de tornar tudo mais prático e funcional,
as palavras começaram a perder algumas vogais pelo caminho
e se transformaram em abreviaturas esdrúxulas,
e você virou vc. "Vc q tc cmg?"

Nenhuma linguagem é estática, elas acompanham as
exigências da época, ganham e perdem significados,
mudam de função. Gírias, palavrões, nada se mantém os mesmos.
Qual é o espanto?

Espanto, aliás, já é palavra em desuso:
ninguém mais se espanta com coisa alguma.
No máximo, ficamos levemente surpreendidos,
que é como fiquei quando soube que um dos canais
do Telecine iria abrir um horário às terças-feiras
para exibir filmes com legendas abreviadas,
tal qual acontece nos chats. Uma estratégia mercadológica
para conquistar a audiência mais jovem,
naturalmente, mas e se a moda pegar?

Hoje, são as legendas de um filme. Amanhã,
poderá ser lançada uma revista toda escrita neste código,
e depois quem sabe um livro, e de repente estará todo
mundo ganhando tempo e escrevendo apenas com consoantes
- adeus, vogais, fim de linha pra vocês.

O receio de todo cronista é ficar datado, mas
em contrapartida, dizem que é importante este nosso registro
do cotidiano, para que nossos descendentes saibam,
um dia, o que se passava nesta nossa cabecinha jurássica.
Posso imaginar, daqui a 50 anos, meus netos gargalhando
diante deste meu texto: "ctd d vv".

Coitada da vovó mesmo. Às vezes me sinto uma anciã,
lamentando o quanto a vida está ficando miserável.
Não se trata apenas dos miseráveis sem comida,
sem teto e sem saúde, o que já é um descalabro,
mas da nossa miséria opcional. Abreviamos sentimentos,
abreviamos conversas, abreviamos convivência,
abreviamos o ócio, fazemos tudo ligeiro,
atropelando nosso amor-próprio, nosso discernimento,
vivendo resumidamente, com flashes do que outrora se chamou arte,
com uma idéia indistinta do que outrora se chamou liberdade.
Todos espiam todos, sabem da vida de todos,
e não conhecem ninguém. Modernidade ou penúria?

As vogais são apenas cinco. Perdê-las é uma metáfora.
Cada dia abandonamos as poucas coisas em nós
que são abertas e pronunciáveis.

Daqui a pouco vamos apenas rugir. Grrrrrrrr.
E voltar para as cavernas de onde todos viemos.

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